Liquidation Preference: a evolução da proteção de investidores

agosto/2025

O mercado brasileiro de venture capital tem vivenciado uma evolução constante nos últimos anos, inclusive do ponto de vista jurídico. Essa evolução (e a cada vez maior globalização do ecossistema de startups) implica o mercado local passar a adotar instrumentos, cláusulas e condições que outrora eram vistos apenas em operações estrangeiras. Dentre outras proteções para investidores, as cláusulas de "liquidation preference" vêm ganhando cada vez mais notoriedade, especialmente em operações early stage.

A liquidation preference consiste essencialmente no direito preferencial que determinados investidores possuem para receber seus recursos investidos com prioridade sobre outros acionistas em eventos de liquidação da empresa. Tais eventos incluem não apenas a dissolução societária propriamente dita, mas também operações de venda da companhia, fusões, incorporações ou qualquer distribuição significativa de ativos aos sócios.

Localmente, portanto, há que se tomar cuidado para que uma preferência na liquidação não seja confundida com preferência em eventos de liquidez: idealmente, as cláusulas devem ser capazes de separar situações negativas (ex: liquidação da empresa, com seu fechamento); de situações positivas (um evento de liquidez como M&A ou IPO da empresa).

Em linhas gerais, este mecanismo tem como propósito garantir certa proteção ou retorno mínimo contra cenários de baixo retorno ou mesmo de perda parcial do capital, garantindo a recuperação prioritária do valor investido antes que qualquer distribuição seja feita aos fundadores ou outros grupos/investidores.

A lógica por trás deste dispositivo é de que em muitos casos o investidor toma riscos consideráveis ao aportar capital em empresas nascentes ou em estágios iniciais de desenvolvimento - em contrapartida a essa "exposição ao risco", muitos investidores acabam solicitando uma proteção adicional, de forma a garantir um retorno mínimo em situações adversas.


Origens históricas e desenvolvimento nos Estados Unidos

O conceito se originiou no Vale do Silício durante as décadas de 1970 e 1980, período que marcou a consolidação da indústria de venture capital americana e o desenvolvimento de suas principais práticas contratuais. Fundos pioneiros como Kleiner Perkins, Sequoia Capital e Mayfield Fund foram fundamentais na criação e refinamento dessas estruturas, que à época buscavam maneiras eficazes de mitigar os riscos inerentes aos investimentos em empresas tecnológicas emergentes.

A evolução dessas práticas coincidiu com o crescimento exponencial da indústria de semicondutores e, posteriormente, de software, setores caracterizados por alta capacidade de inovação, mas também por relevante mortalidade e ciclos de desenvolvimento prolongados.

Nos Estados Unidos, a liquidation preference tornou-se prática padrão e é hoje regulamentada através de ações preferenciais (preferred shares) que conferem direitos diferenciados em relação às ações ordinárias. A sofisticação do mercado americano permitiu o desenvolvimento de múltiplas variações do instrumento, cada uma adequada a diferentes perfis de risco e retorno. A modalidade "non-participating preferred" garante ao investidor o direito de receber o maior valor entre sua preferência de liquidação ou sua participação proporcional nos resultados da liquidação, funcionando como uma opção que permite escolher o cenário mais vantajoso para o investidor.

Nos EUA também é possível verificar a figura da "participating preferred stock", tipo de valor mobiliário que confere ao investidor tanto o direito à preferência quanto à participação proporcional no valor remanescente após o pagamento das preferências, permitindo, em certos cenários, maximizar retornos em cenários favoráveis.

Estudos da National Venture Capital Association demonstram que mais de 95% dos investimentos de venture capital nos Estados Unidos incluem alguma forma de liquidation preference, evidenciando sua importância sistêmica no ecossistema de inovação americano. Essa característica reflete não apenas um foco na proteção ao investidor, mas também um padrão para o mercado early stage.

Adaptação ao contexto brasileiro

No Brasil, a adoção desse conceito enfrentou inicialmente significativas limitações, dado o desenvolvimento mais tardio da indústria de venture capital. Além disto, a legislação societária brasileira, originalmente concebida para tratar de grandes corporações e mercados de capitais mais tradicional, não oferecia a flexibilidade necessária para implementar, o que fez com que certos instrumentos se desenvolvessem ao largo da legislação societária.

A evolução legislativa gradual, especialmente através das alterações promovidas pela Lei 10.303/01 e marcos regulatórios posteriores editados pela Comissão de Valores Mobiliários, permitiu maior flexibilidade na estruturação de direitos diferenciados, assim como o Código Civil de 2002. Paralelamente, a prática de mercado desenvolveu soluções criativas para contornar estas limitações legislativas, permitindo que advogados especializados encontrassem caminhos para implementar estruturas funcionalmente equivalentes às utilizadas em mercados maduros - o que se deu precipuamente através dos instrumentos de mútuo conversível.

Atualmente, é possível observar o uso de cláusulas de liquidation preferece em diversas modalidades de contratos - seja em mútuos conversíveis, contratos de investimento anjo ou outros estabelecidos na Lei Complementar 182 (Marco Legal das Startups), ou mesmo em momentos pós conversão, quando são celebrados acordos de acionistas replicando certos direitos e obrigações que constavam dos instrumentos de investimento.

Aplicações práticas 

A aplicação prática da liquidation preference deve considerar cuidadosamente o contexto específico de cada operação e os objetivos tanto da empresa quanto do ivnestidor. Em investimentos de rodadas iniciais (seed e early stage), onde o risco de insucesso é estatisticamente mais elevado, a implementação de preferências de liquidação pode ser essencial para o aporte de fundos institucionais ou grupos-anjo. Em rodadas de captação posteriores (Series A em diante) pode ser mais raro verificar esse direito, na prática.

A presença de múltiplas classes de investidores, comum em empresas que realizam diversas rodadas de captação ao longo de seu desenvolvimento, também justifica o uso de preferências para estabelecer hierarquias claras de direitos e evitar conflitos futuros.

A escolha entre diferentes modalidades de liquidation preference deve refletir cuidadosamente o perfil de risco e retorno esperado da operação. Uma preferência simples (1x non-participating) oferece proteção básica adequada para startups já consolidadas ou com menor grau de risco, funcionando essencialmente como uma garantia de devolução do capital investido. Múltiplos mais elevados (2x ou superior) podem ser requeridos ou aplicáveis em cenários de risco mais elevado ou quando os valuations são considerados particularmente agressivos.

A preferência participante (participating preferred) mostra-se adequada quando se busca simultaneamente proteção contra perdas e participação significativa em cenários de alto retorno. Contudo, deve ser utilizada com parcimônia para não criar desincentivos excessivos para empreendedores e potenciais investidores em rodadas futuras, que podem perceber a estrutura como excessivamente favorável aos investidores anteriores.


Desafios de implementação e considerações regulatórias

A implementação efetiva de liquidation preferences no contexto brasileiro requer análise criteriosa de múltiplos aspectos: eventual concessão de direitos muito benéficos a investidores pode acabar dificultando rodadas futuras, ou mesmo inviabilizando-as.

É também fundamental o alinhamento dessas estruturas com estratégias de saída planejadas, seja através de oferta pública inicial (IPO) ou operações de fusão e aquisição (M&A). Diferentes estratégias de saída podem afetar significativamente a efetividade das preferências estabelecidas, tornando essencial uma visão integrada que considere não apenas a proteção imediata do investimento, mas também sua compatibilidade com os objetivos de longo prazo de todos os stakeholders.

O mercado brasileiro tem demonstrado crescente sofisticação na adoção destes instrumentos, seguindo tendências globais de maior proteção institucional em investimentos de alto risco e contribui significativamente para o amadurecimento do ecossistema nacional de inovação. À medida que o mercado se desenvolve, podemos esperar uma maior padronização dessas práticas e o desenvolvimento de novos instrumentos que atendam às especificidades do contexto brasileiro, mantendo sempre o equilíbrio necessário entre proteção ao investidor e incentivos adequados ao empreendedorismo.

A compreensão adequada da liquidation preference e sua implementação correta representam, portanto, elementos fundamentais para o desenvolvimento sustentável do ecossistema brasileiro de venture capital, contribuindo para a atração de capital institucional e o crescimento de empresas inovadoras no país.

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